O ano era 1969. Lina Bo Bardi vagava pelo bairro paulistano do Bixiga, que na época mais parecia uma zona de guerra. As clareiras e pilhas de escombros eram resultado de uma urbanização violenta que cortava a região sob a forma do complexo viário leste-oeste de São Paulo.
Nesse contexto, Lina recolhia objetos pessoais encontrados nos entulhos, catava o que havia de mais sórdido, como Zé Celso, diretor e criador do Teatro Oficina, afirmou em entrevista. Essa operação tinha um motivo, compor o cenário da peça Na selva das cidades, desenhado pela própria arquiteta. Nela, conformava-se um palco em forma de ringue de boxe materializado pelos entulhos das demolições ocorridas no entorno do teatro. Uma peça dividida em 11 rounds no qual em cada um deles destrói-se uma instituição até destruir o próprio ringue. No final, os atores retiram o até o piso do teatro e chegam na terra.
Como uma encenação da violência contida na destruição urbana e na remoção dos moradores do bairro, a peça foi fundamental para a consolidação do que hoje se entende pelo Teatro Oficina e sua conexão intrínseca com o lugar, iniciando não apenas a parceria de sucesso entre a arquitetura e companhia – a qual culminou no projeto do Teatro – mas também, marcando a importância do Oficina como um agente político urbano, papel que se fortaleceu cada vez mais ao longo dos anos.
Localizado em um terreno estreito e comprido, o Teatro Oficina tal qual conhecemos hoje, com seus andaimes como assentos para plateia, com o palco-rua que corta a edificação e com a grande fachada lateral envidraçada voltada para uma árvore majestosamente iluminada, só foi concluído mais de 20 anos após a encenação da peça mencionada. Premiado e reconhecido internacionalmente, o projeto desde o início extrapolava as paredes envoltórias da edificação. Sua parte não concretizada, o Teatro de Estádio, abraçaria os terrenos do entorno pertencentes ao Grupo Silvio Santos (GSS) que foram descortinados em 1980 por meio de uma encenação a qual abria furos na parede dos fundos do teatro, descobrindo o grande vazio urbano que o confrontava. Esses buracos na parede, diz Guilherme Wisnik no texto Oficina: um Teatro atravessado pela rua (2016), apareceram nos primeiros croquis de Lina designados como “Guerra da Espanha”, em referência a uma luta de resistência que assume a violência (no caso, os buracos) como arma geradora.
O novo Teatro Oficina foi inaugurado em 1993, um ano após o falecimento de Lina Bo Bardi, momento no qual ninguém menos do que Paulo Mendes da Rocha assume o projeto em um contexto mais amplo, criando um desenho urbanístico que incorporava não apenas o estacionamento, mas também o próprio complexo viário. A ideia configurava-se em uma mistura de ateliês de cenários sob o viaduto e telas que reproduziriam o que estaria acontecendo dentro do Teatro para os motoristas que cruzavam a via expressa criando, como Wisnik apresenta na própria fala de Zé Celso, uma “Times Square dionisíaca”.
Independente do desenho ou da escolha formal dos projetos, a ideia geradora do desejo era principalmente resgatar a vocação popular do bairro, extrapolando os limites construídos da edificação e utilizando a arte como ferramenta para a apropriação pública dessa porção da cidade. Um bairro que sempre foi fundamental para vida cultural urbana e que via seu papel sendo gradativamente fagocitado pelas torres de concreto e vidro.
Nesse sentido, o plano do Grupo Silvio Santos para os terrenos adjacentes – alguns dos últimos vazios urbanos da cidade de São Paulo e que somam uma área de cerca de 11 mil m2 – não poderia ser mais diferente do que o Teatro Oficina desejava. A disputa iniciada em 1980 tinha, portanto, em uma das pontas o GSS que defendia a construção de um shopping e torres residenciais de 100 metros de altura. Uma vocação imobiliária que Silvio Santos carrega desde a abertura da sua própria construtora para erguer as casas sorteadas no Carnê do Baú, seu programa de televisão. E, consequentemente, na outra ponta, Zé Celso e o Teatro Oficina com seu espaço “anti-shopping por excelência, um teatro que tem seu próprio céu, que deixa o sol entrar” e que deseja se abrir para rua e para o bairro por meio de um dispositivo cultural a céu aberto.
Desde então, 40 anos se passaram e o mesmo embate continua vivo, não se tratando mais de uma “simples” disputa territorial, mas sim, da materialização de uma condição intrínseca nas cidades brasileiras que ganhou voz por meio da urgente e grandiosa resistência que o Teatro Oficina nos oferece e nos ensina ao longo dessas décadas, mostrando a potência dos movimentos sociais e da arte-ativismo. Nessa narrativa, dois homens transformados em personagens antagônicos teatralizam na vida real a disputa entre o direito à propriedade privada versus o direito à cidade ou o direito de produzir a cidade por aqueles que a vivem, em um contexto que não envolve apenas a economia, urbanismo, política urbana, ocupação do solo, mas também o teatro. Uma história que desvela os inúmeros malabarismos de resistência que precisaram e precisam ser feitos para enfrentar o desenvolvimento desenfreado e a descaracterização das nossas cidades. Uma prática política urbana do Teatro Oficina que foi endossada e fortalecida também por suas atividades urbanas críticas que trazem o teatro para a rua e o inserem em movimentos urbanos como MST e MTST.
O grupo tão fundamentalmente contestador, que em seu momento se opôs a ditadura, ao fascismo, ao genocídio indígena, critica também a especulação imobiliária e a produção e ocupação desigual do espaço urbano. Uma luta que, diferentemente de muitos outros temas, permanece ativamente presente desde a origem do Teatro. Nesse sentido, a simbologia do Oficina expande sua fundamental posição contestadora e se materializa em um edifício de valor histórico inquestionável que irradia para o seu entorno, para o público, para a cidade.
Entre uma série de reviravoltas, digna de uma peça de teatro, que inclui autorizações para construção, embargos e processos de tombamento – podendo ser melhor compreendida no documentário Para ver a luz do Sol – 40 anos da luta Teatro Oficina x Grupo Silvio Santos – o terrain vague em questão permanece à espera do desfecho dessa disputa. Inclusive, vale ressaltar que, ao longo dos anos, outros arquitetos também apresentaram propostas para os terrenos adjacentes, incluindo Brasil Arquitetura, contratado pelo GSS, e o irmão de Zé Celso, João Batista Martinez Correa. Mais recentemente, entretanto, a companhia – em um entendimento primorosamente lúcido da situação urbana – “abandonou o cimento” e, assim como o último ato da peça desenhada por Lina, quer encontrar a terra. Sendo assim, passou a defender a criação de um parque e sítio arqueológico, um pulmão para cidade que resgata o rio canalizado, o Parque do Rio Bixiga, afinal, “antes de ser país, éramos árvore”.
Em um dos últimos encontros entre Silvio Santos e Zé Celso, Silvio diz “não sonha, Zé, deixa de ser artista, ninguém vai dar esse terreno para você”. Enquanto Zé Celso, antes de ser interrompido responde, “pra mim?” O ato falho presente na fala do magnata da comunicação resume muito bem o grande problema da produção do espaço urbano, o individualismo que se sobressai na construção de uma cidade que seria, por essência, coletiva pois, obviamente, a ideia do Oficina sempre foi devolver o terreno à sua população. O diretor Zé Celso deixou este mundo no início do mês, passando a responsabilidade da criação do Parque do Rio Bixiga não apenas para sua trupe, mas para todos os cidadãos conscientes, como uma oportunidade de levarmos a sério o alerta que o líder yanomami Davi Kopenawa faz em seu livro A queda do céu (2015), base para a última peça criada por Zé Celso: “os homens brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos”.